A História do Boto
A notícia da chegada de José Pedro, neto
da velha Iracema, correu rapidamente o povoado naquela manhã. Todos os
cochichos e falatório das mulheres no mercado eram sobre o assunto. Num fim de
mundo daqueles, onde as novidades do século XXI pareciam ter sido esquecidas em
um braço qualquer do rio, o que quer que os aproximasse da vida moderna era motivo
de agitação.
A velha Iracema havia sido uma
cabocla muito formosa quando moça, mas já era madura quando pegou barriga de um
mascate vindo do sul, cheio de tecidos, panelas e fala mansa. O homem morrera
de malária um pouco depois do casamento apressado, deixando como herança apenas
o filho ainda no ventre e contas penduradas na venda.
As lavadeiras, que usavam as pedras
do rio para branquearem suas roupas, discutiram o assunto durante um bom tempo.
E acabaram por concluir que a criança, na verdade, era filha do boto – como era
o costume quando alguma moça aparecia grávida e sem marido -, e o mascate havia
morrido de desgosto por causa da vergonha de ter sido traído.
Fosse como fosse, dona Iracema (na
época ainda sem idade para ser conhecida como velha) foi seguindo com sua vida.
Arrumou um emprego na venda, como forma de saldar a dívida feita pelo marido e
vendia tapioca na praça, logo após a missa do domingo. À medida que o filho
crescia, a beleza e os modos do menino encantavam a todos e logo a verdade
sobre sua paternidade foi se tornando menos importante. O assunto que rodeava
agora dona Iracema era saber lidar com a quantidade de moças da região (e
algumas senhoras também) que viviam a rodeá-lo.
A preocupação de dona Iracema era
tanta que quando o rapaz mal começara a raspar os poucos pelos que surgiram em
seu rosto, ela resolveu mandá-lo morar com alguns parentes na cidade grande,
com a desculpa de terminar os estudos. E essa decisão parecera suficiente para
acalmar suas preocupações.
O rapaz nunca havia voltado ao
povoado para rever a mãe, mesmo quando a febre ameaçou levá-la. As mesmas
lavadeiras que um dia especularam sobre sua paternidade, passaram a especular
sobre seu destino e, com o pouco material que conseguiam arrancar de dona
Iracema, concluíram que o rapaz havia assentado lugar na cidade e arrumado
emprego e família.
Isso acontecera há muitos anos. Muito
antes do pai de Maíra ser transferido de sua confortável sala com ar
condicionado na capital, para um cubículo em um prédio oficial do povoado à
beira do rio. Antes da mãe dela se cansar da vida pacata que fora obrigada a
viver e abandoná-los.
Se pouco se sabia sobre o destino do
filho da velha Iracema, de seu neto, então, menos ainda se ouvira falar. Mas
isso não impediu Maíra de divagar nos comentários das pessoas e ficar curiosa
sobre o “neto do boto”. Havia uma aura de mistério em torno da história da
velha Iracema que a fazia se lembrar das lendas que sua avó lhe contava quando
criança. Histórias antigas cheias de magia, enfeites e um bocado de ingenuidade
na opinião dela.
Em pleno século XXI, ninguém mais
acreditava em filhos de boto. Mesmo naquele fim de mundo. Quando uma moça
aparecia grávida, não se colocava a culpa em nenhum ser fantástico que só
existe nas histórias dos velhos. Corria-se atrás do desgraçado que se
aproveitara da garota e fim de papo.
Com a cabeça cheia de pensamentos
como só uma jovem despreocupada é capaz de ter, no fim da tarde, Maíra já havia
quase se esquecido daquela história de filhos de botos e netos de velha
Iracema. Seguiu sua rotina e foi se banhar na beira do rio como sempre fazia
naqueles dias quentes. Ela podia ter nascido na cidade grande, mas depois de
tantos anos morando ali, era cria do povoado e, como tal, sabia apreciar um bom
banho de rio para refrescar o calor.
Maíra sentia-se livre nas águas do
rio. Fora assim desde o primeiro momento que avistara o rio, ainda criança. Nadar
por aquelas águas, sentindo-as correr por sua pele; descobrir seus caminhos,
suas partes mais fundas, as margens mais atraentes. Era capaz de mergulhar ao
lado dos peixes, como se fizesse parte do cardume ou pegar um dos grandes para
o jantar apenas com as mãos.
Acostumara-se a percorrer o rio,
seguindo seu curso, sozinha. As meninas e os meninos de sua idade sempre
pareceram tolos demais para fazer-lhe companhia e rapidamente perderam sua
graça. A distração preferida de Maíra era espiar as pessoas ribeirinhas, escondida
pelos pequenos barrancos e pedaços de mata que encontrasse.
Vira muita coisa daquele jeito.
Brigas de marido e mulher, repletas de gritos e blasfêmias; pescadores limpando
o resultado do dia de trabalho, fedendo a suor e escamas; encontros de amantes
sorridentes e desejosos de um momento a sós.
Porém, tinha vezes em que somente
boiar nas águas do rio era o suficiente para acalmar Maíra. E daquela vez fora
assim. Abriu os olhos ao sentir a brisa da noite alcançar seu corpo, ainda a
tempo de ver o sol se esconder, tingindo o céu de tons avermelhados que
anunciavam que o calor continuaria no dia seguinte, e dar lugar à lua cheia.
Ergueu-se refeita, com o vestido – que há muito deixara de tirar para entrar no
rio – colado ao corpo esguio. Caminhou devagar, sentindo as plantas e pedras em
seus pés e um arrepio estranho percorrer sua espinha. Com os olhos acostumados
ao entardecer, procurou à sua volta por nada nem ninguém específico, mas não
encontrou.
Uma agonia foi se formando em seu estômago
de tal forma que Maíra desconhecia, e que não imaginava que apenas um simples
passeio pela praça iria acalmar. Entretanto, chegou em casa, se arrumou e saiu
sob o olhar cansado do pai.
Como quase todo lugarejo do interior,
naquela época do ano, a praça estava enfeitada para o início dos festejos
juninos. Muitas bandeirolas e lanternas, balões e estandartes, tencionavam
alegrar o povo e os poucos visitantes que se aventurassem por ali. Algumas
poucas barracas ladeavam a igreja, que anunciava novenas e missas especiais
naqueles dias, entremeadas com músicas e apresentações mambembes. De um modo
geral os moradores estavam mais animados. Mesmo com pouca gente de fora
chegando, as pessoas aproveitavam para sair da mesmice de todo dia.
Maíra passou pelas ruas sentindo o formigamento
em seu corpo aumentar. Cumprimentou conhecidos e relanceou os olhos para
aqueles com quem não trocava palavra em dias normais. Cogitou a hipótese de se
juntar às moças sentadas próximas ao coreto, onde uma banda tocava e algumas
pessoas arriscavam passos de dança, mas desistiu. Ela preferia ficar num canto
sozinha, observando as pessoas indo e vindo, esperando por algo que não sabia o
que era e se realmente iria acontecer.
A noite foi passando devagar,
enquanto um violeiro mantinha os casais dançando para que os músicos da pequena
banda pudessem tomar um trago e descansar. Maíra ignorou boa parte dos olhares
e propostas – indecorosas ou nem tanto – que lhe fizeram, mas concedeu um
sorriso e uma prosa para alguns poucos.
Bebericou do copo que a serviram, dando
ao rapaz que tentara agradá-la um sorriso bonito e falsas esperanças de um
passeio em outro dia. Cortou a conversa de um pescador que havia bebido um
pouco demais, com a desenvoltura que se esperava de uma moça direita, mas
esperta. Já estava quase desistindo de esperar o que quer que fosse quando sua
atenção foi chamada para o outro lado da praça, para as pessoas que chegavam.
Seu Tonho, dono da venda, vinha
acompanhado de um rapaz alto, de pele clara e bonitos cabelos castanhos,
parcialmente cobertos por um chapéu fora de moda. Pelo alvoroço das moças perto
do coreto, Maíra percebeu que aquele só poderia ser o tal de José Pedro, neto
da velha Iracema.
A história do boto perpassou sua
lembrança e ela decidiu olhar o rapaz mais de perto. Como se sempre houvesse
estado por ali, juntou-se às garotas no coreto e atentou para o conversê
frenético entre elas. Aquele era
realmente o neto da velha Iracema. Sim, ele era bem bonito. A amiga da vizinha
da dona Iracema contou que ele ia virar doutor. Depois disso, foi um tal de
alisa a roupa e ajeita os cabelos, um empresta-empresta de batom cor de cereja,
que Maíra logo se incomodou e saiu de perto. Não tinha nenhuma intenção real.
Queria ver esse José Pedro. Só isso. Mas o formigamento em seu corpo foi aumentando
de tal forma que acabou impelindo-a a chegar mais perto e cumprimentá-lo.
Como amigo da velha Iracema, seu
Tonho, incumbira-se da tarefa de apresentar o lugar a José Pedro. O povoado
preparava-se há dias para as festas, de forma que o jovem, tão habituado aos
costumes da cidade grande, ao menos teria algo para se distrair enquanto visitasse
a avó.
José Pedro era, no entanto, muito
diferente do que ele esperava. Um moço de poucas palavras e modos respeitosos,
tímido até, quase não quisera ir à praça, tomar a fresca da noite e matar a
curiosidade das pessoas do lugar.
O dono da venda estranhara as roupas
quase formais que José Pedro colocara e já ia questionar o motivo do chapéu
panamá que insistira em usar, quando a velha Iracema, apoiada em sua bengala,
murmurou parada ao lado da porta de onde se despedia: ‘é lembrança do avô’.
Quando alcançaram as luzes da praça,
seu Tonho quase sabia tanto quanto antes sobre a vida de José Pedro. A família?
Estava bem, obrigado. Estudava? Acabara de entrar para a Faculdade de Direito.
Tocava viola? Só um pouco, para distrair. Namorada? Uma vez, mas acabou. Foi
com alívio que reconheceu alguns rapazes numa barraca próxima e apresentou-o a
eles, passando a tarefa adiante.
Por ter sido motivo de cochichos
entre as moças, desde que souberam de sua chegada, alguns rapazes ficaram
ressabiados ao conhecerem José Pedro. Mas, ao tentarem conversar com ele, e
obterem muitos monossílabos como resposta, não ficaram tão impressionados assim
com a figura bonita que ele fazia. Pensaram que pelo menos ele serviria para
atrair a curiosidade das garotas, sempre sedentas de novidades, para perto
deles.
Quando viram Maíra se aproximando,
acreditaram terem razão e o neto da velha Iracema teria lá sua serventia,
afinal. Exibindo o vestido branco com que normalmente ia às missas de domingo,
a garota prendia a atenção de todos. Sua pele morena era viçosa e parecia
brilhar ao luar. Ela não parecia precisar de nenhum artifício para atrair os
rapazes à sua volta.
Tião, um filho de índios que tentava
aparentar ser tão moderno quanto seus amigos com parentes na capital, ajeitou a
gola da camisa de botões que usava, arrumou o sorriso mais sedutor que conhecia
em seu rosto e foi logo se arvorando.
_ Noite, Maíra. Quer um trago?
A garota olhou para ele como se não o
compreendesse, deixando Tião chateado e prestes a virar alvo das piadinhas dos
amigos. Continuou seu caminho, ouvindo os assovios no seu rastro, sem dar
atenção, até ficar em frente a José Pedro.
A agonia que lhe acometera durante
toda a noite pareceu chegar ao ápice quando finalmente olhou o rapaz de perto.
Por ser bem um palmo mais baixa que ele, teve que levantar o rosto para admirar
a pele rosada, os lábios carnudos e olhos cinzentos de José Pedro. Por pouco pensou
em não prosseguir mas, enfeitiçada como estava, Maíra tomou coragem e perguntou
de uma vez:
_ Quer dançar?
A resposta de José Pedro, aguardada
com suspeita e inveja pelos rapazes ali perto, demorou alguns segundos para ser
dada. Ele olhou a moça à sua frente, encantadora e desejável e um pequeno
sorriso, verdadeiramente sedutor, curvou-lhe a boca, num assentimento mudo.
O burburinho por toda a praça agora
se voltava para o casal animado, dançando ao som da bandinha que, de volta ao
coreto, tocava as modas mais conhecidas enquanto a noite corria.
Maíra não gostava muito de dançar
agarrado. Normalmente, se irritava facilmente com os rapazes que pareciam ter
mil mãos em vez de duas e que tentavam apalpá-la durante a dança. Porém, quando
sentiu o toque de José Pedro em sua cintura, nem um centímetro além do que o
decoro permitia, desejou que ele tentasse. A pressão gentil que fazia com que
seus corpos se aproximassem e roçassem um no outro durante os movimentos
ritmados da música, a deixou sem fôlego.
Para que pudessem se ouvir com
clareza, foram obrigados a juntar os rostos e falar nos ouvidos. E assim
ficaram sabendo muito mais da vida um do outro do que poderiam ter imaginado no
início daquela noite.
José Pedro contou sobre a vida na
cidade e do fato de ter entrado para a faculdade de Direto para agradar ao pai.
Seu sonho era viajar pelo mundo, viver no estrangeiro. Maíra falou como era a
vida antes da mãe sumir no mundo e da saudade que por vezes sentia. Tinham
muitas coisas em comum: apreciavam as cirandas, as tapiocas e um bom prato de
açaí; se arreliavam durante missas longas e perdiam a paciência com as
apresentações de circo.
Riram juntos de besteiras, cantaram
juntos com o violeiro – que voltou novamente a tocar quando os homens da banda,
já cansados, resolveram se retirar –, e só se despediram quando a noite começou
a dar os primeiros sinais de que ia acabar. Prometeram se encontrar novamente
na noite seguinte, com olhos brilhantes e um beijo casto na bochecha.
O dia pareceu se alongar ao máximo e,
quando finalmente o céu começou a escurecer, Maíra era uma ansiedade só.
Colocara o vestido novo que uma tia havia lhe enviado de aniversário,
garantindo que era a última moda na cidade grande, e uma boa dose de seu
perfume preferido. Pintou os lábios e arrumou os cabelos, rezando para causar
uma boa impressão.
José Pedro a esperava na porta da
igreja, de onde podiam ouvir o varre-varre das beatas após a última missa.
Ainda demoraria até a música começar, então aproveitaram para passear entre as
barracas e os olhares ressentidos das moças do lugar.
Quando a banda finalmente começou a
tocar, Maíra pode confirmar o que sentira na noite anterior. José Pedro era um
excelente dançarino, a fazia querer que a música demorasse a parar e que
pudesse estar em seus braços pra sempre. Na verdade, fazia Maíra querer muito
mais coisas do que ela, um dia, poderia supor desejar.
Lá pelas tantas, quando o número de
casais ao redor tinha se tornado grande, Maíra conseguiu convencer José Pedro a
da uma volta perto do rio. A noite estava quente e eles não tinham ficado
sozinhos em nenhum momento desde então, e, com mais algumas desculpas capengas,
não foi difícil fazer com que o rapaz parasse de pensar no que o povo ia falar
se os vissem sumindo de repente.
A lua cheia, refletida nas águas
calmas do rio, era uma bola disforme de brilho e luz, dando um toque de magia
ao local. Maíra decidira passar por cima dos bons modos do rapaz - e da boa
fama que tinha – para satisfazer seus desejos. Mal chegaram à margem, tão sua
conhecida, para enlaçar José Pedro pelo pescoço e puxar os lábios dele contra
os seus.
José Pedro foi pego de surpresa, mas
era rapaz novo cheio de fogo adormecido nas veias. Com a mesma maestria com que
soube conduzir a moça durante a dança, apertou Maíra contra seu corpo, roçando,
pressionando, gemendo.
Num momento estavam abraçados, em pé
na margem do rio, alguns beijos depois e Maíra e José Pedro somente seriam
encontrados por alguém que tentasse muito procurá-los. Misturados aos sons da
floresta acharam a privacidade que queriam numa pequena parte da encosta, rio
acima, que por seu desenho parecia mais uma pequena praia de água doce,
escondida dos olhos de quem passasse pela trilha.
Tirando alguns poucos peixes e uma ou
outra ave noturna, ninguém os viu, nem os procurou. Envolvidos pelo encantamento
que os uniu desde o momento em que se viram pela primeira vez - ou até antes,
vá se saber -, amaram-se dentro das águas do rio, assistidos pelo luar.
Quando o céu começou a tornar-se mais
claro, José Pedro pareceu se dar conta do tempo que havia passado e das coisas
que fizeram. Meio avexado, meio contente, ajudou Maíra a se compor e atravessou
com ela o caminho pelos fundos da vila, até alcançarem a casa dela. Mais uns
dois beijos depois e carregando as sandálias na mão, a garota entrou em casa,
silenciosamente, para que seu pai, mais do que ninguém pudesse desconfiar do
que acontecera.
Na noite seguinte, José Pedro
surpreendeu Maíra – que passara o dia inteiro se remoendo de dúvidas e
ansiedade -, indo até sua casa, apresentando-se ao seu pai e levando-a para
passear. Assistiram a uma apresentação de repentistas, tomaram sucos em uma das
barracas e desfilaram de mãos dadas para alegria das fofoqueiras locais que
andavam doidas para ter do que falar.
A lua cheia estava alta no céu quando
voltaram à margem da noite anterior com a mesma vontade e desejo da primeira
vez. Deitaram-se sobre a relva da beira do rio, depois nadaram juntos, nus,
brincando como só os enamorados conseguem fazer.
À medida que as noites foram passando
e a mesma rotina foi sendo cumprida, Maíra enchia-se de certeza de que encontra
o verdadeiro amor. José Pedro, sempre galante, dizia-lhe coisas bonitas
fazendo-a crer num futuro a dois, mesmo não lhe prometendo nada em nenhum
momento.
Já era perto do meio-dia quando Maíra
acordou lânguida e feliz. Abriu as janelas do quarto, se arrumou, tomou o café
que o pai deixara preparado antes de sair para o trabalho, e saiu com a mesma
expressão de felicidade incontida que a acompanhava na última semana, desde que
conhecera José Pedro.
Foi até a loja de tecidos, atrás de
uma renda nova para um vestido, e percebeu que havia muito burburinho no seu
rastro. Normalmente ela não reparava nos buchichos alheios, mas daquela vez
algo parecia diferente. Notou que as moças que passavam por ela cochichavam
umas com as outras, com expressões contentes e maliciosas. Contentes e
maliciosas demais para o gosto de Maíra.
Tentou ignorar os olhares em sua
direção quando voltava pra casa, decidida a não se deixar perturbar pela
maledicência dos outros. Não tinha nada para se envergonhar, e fora seus
encontros com José Pedro na beira do rio – que julgava ser apenas algo
temporário enquanto não assumiam o namoro, ou quem sabe, já um noivado -, nada
a esconder.
Mas isso foi o suficiente para fazer
a incerteza se alojar dentro de Maíra, crescendo com o passar do tempo e
tomando forma de desespero quando a hora em que normalmente o rapaz chegava em
sua casa para passearem, veio e se foi.
_ Há de ter acontecido alguma coisa,
milha filha. Dizem que a velha Iracema anda nas últimas, o rapaz deve de ter
tido que ficar com a avó.
Repetindo as palavras do pai para si
como uma lenga-lenga, Maíra tentou controlar o nervosismo. No dia seguinte José
Pedro daria notícias, tudo ficaria explicado e suas vidas seguiriam como ela, em
sua criatividade juvenil, tinha imaginado. Porém, quando o sol novamente nasceu
e ficou a pino, nada havia mudado. O rapaz não aparecera nem mandara recado.
Sentindo a agonia tomar forma, Maíra decidiu procurar, ela mesma, saber o que
estava acontecendo.
Indo direto até o pequeno armazém,
Maíra interrompeu a venda que Seu Tonho fazia, chegando apressada e
perguntando:
_ Onde está José Pedro?
_ Como assim, menina? – Com um olhar
que misturava confusão e um tanto de desconforto por ter sido obrigado a parar
uma venda, Seu Tonho entregou a mercadoria ao freguês que olhava a tudo com
impaciência, e recebeu o pagamento, antes de continuar. - Onde ele havera de estar? Na casa dele, ora.
_ Ele está cuidando da velha Iracema?
Aconteceu algo com ela? – perguntou, suspirando de alívio.
_ Que eu saiba, dona Iracema tem
passado muito bem. Porque Zé Pedro teria ficado com a avó?
_ Não estou entendendo, seu Tonho. O
senhor não disse que ele estava em casa?
_ Sim, menina. Na casa dele, na
cidade grande. José Pedro voltou ontem, logo de manhãzinha, aproveitando um
barco que partiu praquelas bandas.
Como uma alma penada, Maíra voltou
para casa, onde foi para cama tentando acreditar que nada daquilo estava
acontecendo. Revirou sua cabeça, remexeu nas lembranças, procurando algum
indício, alguma fala em que José Pedro desse uma pista que ia embora, mas não
encontrou nenhuma. Era verdade que o rapaz tentara conversar com ela na última
noite e que ela não deixara, praticamente atacando-o mal chegaram ao rio, mas isso ela não queria lembrar.
O pai de Maíra estranhou quando, ao
chegar em casa no final do dia, encontrou-a às escuras e no silêncio. Procurou
pela filha e encontrou-a prostrada em sua cama, os olhos vermelhos e inchados,
e logo entendeu o que acontecera. As fofocas na cidade corriam como vento, e a
partida do neto da velha Iracema logo chegou aos seus ouvidos. Era uma pena,
José Pedro parecia ser um bom rapaz e Maíra gostava muito dele. Gostava demais,
pelo que estava vendo.
Sem saber direito como agir com a
filha, aliás, como acontecia desde que sua mulher os abandonara, o pai de Maíra
apenas a deixou em paz para que curasse suas feridas sozinha, assim como ele
fizera.
Com o passar dos dias, a prostração
de Maíra deu lugar à tristeza, depois ao desespero e por fim à revolta. Como
ele pudera fazer isso com ela? Decidida a não dar mais motivo para falarem
dela, como tinha certeza de que estavam fazendo desde que José Pedro partira,
resolveu a voltar à praça naquela noite, onde continuava a ter festejos para os
santos da época.
Fingindo ares de pouco se importar
com o ocorrido, Maíra se esforçou ao máximo para se misturar com as moças do
lugar. Fazendo vista grossa para as insinuações e provocações, chegou mesmo a
rir e brincar, sentindo-se vingada a cada mentira que se via obrigada a contar.
Aos poucos, outros acontecidos foram
virando motivo para as fofocas da cidade, e Maíra já havia decidido esquecer o que
se passara, quando a vida pregou-lhe uma peça. A lua já tinha minguado, sumido
e tornado a crescer, quando Maíra deu por falta de suas regras. Ela não era
tola e havia aprendido na escola, alguns anos antes, o que isso normalmente
significava.
Desesperou-se por um momento,
pensando em tudo que lhe havia acontecido desde que ouvira falar de José Pedro,
o “neto do boto”. O neto do boto!
Como fora burra ao não acreditar nas histórias de sua avó. Não diziam que toda
lenda, toda fantasia, se baseia na verdade? Então, era isso. José Pedro não era
só o neto do boto, era ele mesmo um boto. Por isso ficara tão encantada com
ele, por isso ele sumira depois de algum tempo.
Remoeu por alguns dias suas dúvidas e
certezas, preconceitos e lembranças atrás do que apoiasse sua descoberta. Sua
mente de garota do século XXI teimava em achar um absurdo, mas sua alma do
interior, criada na beira do rio, se agarrava a lendas que mal recordava para
solucionar seu problema.
O sol mal nascera quando Maíra saiu
de casa, logo após o pai, e seguiu pelo caminho por onde diziam que se chegaria
até a casa da velha Iracema. Se alguém por ali podia lhe dar alguma resposta
era ela. Mal havia pensado que saíra da trilha e se perdera quando avistou o
casebre humilde, com paredes de pau-a-pique sob folhas de amianto, tudo
parecendo tão velho quanto à própria dona.
Ansiando por respostas, bateu à porta
impaciente e, tão logo foi convidada a entrar pela senhora, foi logo despejando
suas dúvidas.
_ A senhora precisa me dizer como eu
faço para encontrar o José Pedro.
_ Então, você é a menina por quem meu
neto estava enrabichado. Eu posso até lhe dar o endereço dele na cidade, mas
nessas horas ele já nem deve de estar mais por lá. Ia começar os estudos na
capital, sabia?
_ Mas eu preciso falar com ele. Não
tem telefone?
_ Nunca usei, menina. Meus parentes
sempre me mandam notícias por meio de cartas, e eu prefiro assim.
Tomada por um pânico que a agitava e
mexia com seu bom-senso, resolveu ir direto ao assunto.
_ Dona Iracema, por favor, eu preciso
que a senhora confirme: seu neto é um boto, não é?
_ Um boto? De onde você tirou essa
idéia? E o que a menina sabe sobre botos, afinal?
_ Ora... O mesmo que todos – Maíra
argumentou, decidida. – Eles viram moços bonitos durante a lua cheia, quando
atraem garotas durante as festas dos santos. Depois eles as seduzem nas margens
dos rios e vão embora, rio abaixo, deixando filhos sem pai por onde estiveram!
O rosto enrugado da velha Iracema se
contorceu num sorriso debochado, ao ouvir a resposta de Maíra. Puxou o fumo do
cigarro de palha que trazia no canto da boca, deixando o silêncio se alargar o
quanto pôde, antes de continuar.
_ E a menina está dizendo que meu
neto Zé Pedro é um boto...
_ Sim! Se fosse com outra, eu ia
apostar que era mentira, mas...
_ Mas?
_ Que outra explicação pode haver?
Ele apareceu do nada e foi embora do nada, exatamente junto com a lua cheia,
vivia com aquelas roupas bonitas, formais; aquele chapéu que não gostava de
tirar... E teve, bem, e teve o rio – mesmo sentindo o rosto corar, continuou. -
Ele se deitou comigo no rio, e agora... E agora eu estou esperando uma criança.
_ E você afirma que meu neto seduziu
vosmecê, a levou pro rio e lhe fez um filho...
Ponderando as palavras da velha
Iracema, Maíra sentiu um suor frio percorrer seu corpo e a ânsia que a
acompanhava esses dias ganhou mais força. Correu para os degraus da soleira e lá
mesmo esvaiu o pouco que havia conseguido comer no café. Esperou os espasmos
passarem e limpou a boca com as costas da mão, antes de se virar e encarar
novamente a velha.
_ Eu não estou mentindo.
_ Sobre se deitar com meu neto,
acredito que não. A menina é vistosa, tem olhar de sereia... Deve de haver uma
fileira de moços atrás d’ocê, tentando arranjar uns minutinhos numa margem
qualquer dessas por aí, rio acima.
_ Eu nunca havia me deitado com
ninguém!
_ Isso é o que a menina diz. Mas
agora, todas as outras vão jurar por Nosso Senhor, que a viram se achegar a um
ou outro. É capaz mesmo, de encontrar um deles pra confirmar.
_ Mentira!
_ Ah, menina, o que é mentira e o que
é verdade pra essa gente do povo? Nesse pedacinho esquecido de terra, entre o
rio e a mata?
Maíra já tinha pensado em tudo aquilo
e no desgosto que causaria em seu pai, quando todos ficassem sabendo. Engoliu o
choro que teimava em aparecer nas horas mais impróprias e levantou-se, pronta
para ir embora e, talvez, seguir os passos de sua mãe.
_ Se a senhora não quer me ajudar,
tudo bem. Eu... eu dou meu jeito. Muito agradecida.
_ E essa criança? E o meu neto, Zé
Pedro?
_ Seu neto não se importou comigo.
Conseguiu o que quis, com aquela cara de santo, e eu achando que decidia minha
vida. Quando deu na veneta, pegou um barco e nem se despediu. Ele não tem mais
espaço no meu coração. Quanto a essa criança... Eu vou ver o que vou fazer...
Ela podia estar andando a esmo, a
cabeça repleta de pensamentos que não se encaixavam, mas seus pés sabiam bem o
caminho a percorrer e quando Maíra percebeu já estava em seu lugar preferido no
rio, que agora lhe trazia tanta dor no coração. Sentou-se na margem, desejando
voltar no tempo, ansiando por nunca ter posto os olhos no neto da velha Iracema
e querendo mais que tudo que José Pedro realmente não ocupasse seu coração.
Deixou as lágrimas lavarem sua alma, depois voltou para casa, onde esperou pelo
pai e contou que havia decidido morar com a avó, na capital.
No casebre de pau-a-pique, dona
Iracema soltou um longo suspiro ao sentar sobre o colchão de palha de sua cama
e apanhar o porta-retrato antigo, na mesinha de cabeceira. Olhando para uma
Iracema bem moça, ainda cabocla formosa, de braços dados com o rapaz que roubou
seu coração, um sorriso saudoso surgiu na face enrugada. Do outro lado do vidro
já meio embaçado pelo tempo, José Pedro dava seu sorriso discreto, em resposta.