Leonor acordou assustada no meio
da noite. Tivera novamente pesadelos com lobos ou ouvira mesmo um uivo alto? Independente
do que acontecera realmente, algo fazia barulho no andar de baixo de sua casa.
Ela não era uma garota impressionável,
não mais. Contudo naquela noite estava incompreensivelmente tensa. Desde que a
lua cheia aparecera no céu, sentiu todos os seus músculos retesarem e os pelos
de sua nuca arrepiar. Permanecera na sala com seus pais, depois do jantar, o
mínimo tempo necessário e em seguida se recolheu. Pensou em manter a lamparina
acesa dentro de seu quarto, contudo não admitia que aos dezoito anos voltasse a
ter medo do escuro.
Novamente escutou o barulho de
algo se quebrando. Talvez sua mãe apenas tivesse deixado algo cair, mas, e se
estivesse precisando de ajuda? Leonor saiu relutante de debaixo das cobertas,
vestiu seu velho roupão, que fazia um enorme contraste com a seda alvíssima de
sua camisola, acendeu a lamparina na mesa ao seu lado e, ainda descalça, saiu
de seu quarto.
Quando chegou ao final das
escadas, seus pés tocaram em algo viscoso e quente. Provavelmente fora isso que
sua mãe derrubara. Contudo, sob a luz fraca que trazia consigo, não soube
identificar do que se tratava. Olhou em volta e distinguiu uma silhueta caída próximo
à escada, foi até lá e, ao ver sua mãe, apressou-se em ajoelhar ao seu lado.
- Mãe! – exclamou, virando o
rosto de Eudora para o lado e retirando os fios de cabelo castanhos de sua face
pálida. – O-o que houve?
- Co...
-Mãe!? – seu coração começou a
acelerar ao dar-se conta de quão debilitada sua mãe estava.
- Corra!
A percepção demorou a acontecer. Correr?
Como assim correr? Olhou para o corpo daquela que sempre a confortara, percebendo
o fio da vida se romper, e a compreensão foi aos poucos a atingindo. Sua casa
havia sido atacada. Sua mãe havia sido completamente retalhada e seu sangue
inundava o assoalho sobre o qual pisava.
Leonor ergueu-se rapidamente. O
coração batendo descompassado, a adrenalina correndo apressada em suas veias,
os olhos arregalados de terror e a velha sensação de frio na espinha.
Um vulto moveu-se em sua direção
enquanto ela dava passos largos para trás, apoiando-se nos móveis, até encontrar
a madeira fria da parede. Pensando em como faria para sair dali e procurar
ajuda, deu-se conta de que ainda tinha que procurar por seu pai, que
provavelmente estava dormindo tranquilo em seu quarto, sem saber o que estava acontecendo.
O fluxo de seus pensamentos foi
interrompido abruptamente quando, tentando dar a volta para chegar novamente na
escada, tropeçou em algo, caindo de costas no chão. O pânico invadiu-a
pouco-a-pouco quando, por causa do luar que entrava pela janela envidraçada,
viu o corpo de seu pai caído próximo aos seus pés, inerte, ensanguentado...
Arrastou-se para longe e com
muito custo conseguiu ficar de pé. Ela tinha certeza que o vulto a espreitava
das sombras. Olhou rapidamente para a porta de entrada, a poucos passos,
tentando raciocinar sobre tudo o que estava acontecendo.
Uma grossa nuvem encobriu
novamente o luar, inundando novamente a sala na escuridão. Leonor podia ouvir
as batidas de seu próprio coração, do mesmo modo que uma respiração pesada, que
não era a sua, aproximava-se. Sabia que tinha de sair dali. Não podia ficar nem
mais um minuto naquele lugar. Andou no breu em direção à porta, tateando pela
maçaneta. Assim que a alcançou, não pensou sequer meia vez antes de abri-la e
sair numa corrida desabalada em busca de ajuda.
Maldita cidade do interior onde
as casas eram tão distantes umas das outras. Quando sentiu suas forças
começarem a falhar devido ao esforço, chegou até a casa mais próxima. Bateu na
porta ansiosa, esperando que o morador conseguisse ouvi-la e ajudá-la.
Ao escutar um barulho vindo do
interior da casa, Leonor respirou aliviada. O luar voltou a surgir. Grossas
lágrimas caíam de seus olhos enquanto via a porta se abrindo. Um arrepio
incontrolável em sua espinha mostrou-lhe que havia algo errado. A pessoa do
outro lado parecia estar esperando-a chegar. Contudo, as mãos que tentavam
tocá-la pingavam sangue, os olhos injetados e a pele descorada, realçavam um
corpo quase sem vida. Instintivamente Leonor retornou sobre os próprios passos
sem se virar. No instante seguinte voltava a correr o mais rápido que podia
rumo a qualquer lugar suficientemente longe dali.
Só quando a ânsia venceu seus
sentidos, Leonor viu-se obrigada a parar de correr. Apoiou-se no tronco de uma
árvore e limpou a boca na manga de seu velho roupão. Aquele ato pareceu acender
algo em sua mente e ela o observou atentamente. A roupa estava quase que
totalmente coberta de sangue. O sangue de seus pais. A despeito da brisa gelada
que pairava no ambiente, arrancou-o e jogou-o sobre as folhas que cobriam o
chão, desesperada, sem conseguir desviar o olhar.
Um uivo alto fez com que tremesse
involuntariamente. Precisava achar ajuda, sair dali... Limpou as lágrimas que
ainda escorriam pelo seu rosto e, olhando a sua volta, tentou identificar onde
estava. Em sua tentativa de se afastar do perigo, nem se dera conta da direção
para onde corria. Ao seu redor, somente antigas e enormes árvores formando uma
pequena clareira, cujas copas deixavam entrever o céu, algumas nuvens e,
principalmente, a lua cheia.
Seus pais nunca haviam deixado
que ela entrasse na floresta próxima a sua casa. Eles haviam contado sobre os
diversos perigos que ali habitavam. E, no entanto, era lá que se encontrava.
Outro uivo, ainda mais perto, a sobressaltou. Empurrando todo sofrimento para o
fundo de sua mente, deixando para trás o velho roupão encharcado com o sangue
de seus pais, Leonor voltou a fugir o mais rápido que conseguiu.
Tropeçou algumas vezes até que,
ao cair por conta de uma raiz protuberante, deixou-se ficar um momento a mais
com o rosto grudado ao chão, a ponta de uma folha tão marrom quanto seus
cabelos incomodando seu nariz. Sentia o corpo doer por conta do cansaço, dos
diversos ferimentos que conseguira ao se embrenhar na floresta em plena
escuridão e pela tensão. Apoiou-se nos joelhos e nas mãos olhando de relance
para o tecido rasgado de sua camisola, fruto de uma queda sobre um espinheiro,
momentos antes. Respirou fundo antes de tirar o cabelo grudado em seu rosto.
Tinha um corte profundo em seu ombro de onde escorria um grosso filete de
sangue.
Levantou-se novamente, torcendo
mais que nunca para que aquela noite acabasse logo. Um barulho de folhas sendo
pisadas chegou ao seu ouvido, forçando-a a continuar em movimento, sem saber ao
certo se isso a conduzia para perto da ajuda ou para o coração da floresta...
Passaram-se longos minutos
durante os quais Leonor sentia que era observada. Mais um uivo, agora bem mais
perto, desviou sua atenção e fez com que caísse novamente ao pisar em um buraco
escondido pelas sombras. Tentou se levantar, mas uma dor lancinante em seu pé a
impediu.
Arrastou-se de costas,
pressentindo mais que nunca o perigo, até encostar-se a um largo carvalho. O
farfalhar das folhas foi como uma descarga elétrica em seu corpo que se
arrepiou. Procurou à sua volta algo com que pudesse se defender, sabendo de
antemão que nada impediria que fosse atacada. Uma grossa nuvem ocultou
novamente o luar, tragando tudo ao seu redor para a intensa escuridão. Um novo
uivo e ela não conseguiu impedir que um lamento desesperado escapasse de seus
lábios.
Podia sentir que era espreitada,
mesmo tendo fechado os olhos de temor. E Leonor desejou tê-los mantido assim
quando, ao abri-los, percebeu o grande animal que saía das sombras e vinha em
sua direção. Os olhos amarelados, as presas visíveis na boca aberta, o rosnado
faminto que ficava ainda mais alto à medida que ele se aproximava. Parecia um
lobo, todavia era ainda maior.
Leonor não se surpreendeu
realmente quando constatou que aquele grande ser parecia mais humano que
animal. Sentiu seu corpo tremer, não pelo frio e sim pelo pavor. Um lobisomem.
Seu mais profundo medo, aquele que tentara diminuir até para si mesma. Aquele
que povoava seus pesadelos desde que tinha a mais tenra idade...
O homem-animal se aproximava devagar,
saboreando o medo que Leonor exalava como se fosse um aperitivo para o que
viria depois. Encarou, com o coração parecendo saltar em sua boca, o seu algoz.
Por um momento o medo evaporou ao divisar o castanho dos olhos do homem
brilhando ao vê-la. Podia senti-lo lutando para evitar o ataque mortal da fera
que o dominava, podia senti-lo se desculpar pelo que seria obrigado a fazer...
Sem se dar conta, levantou a mão para tocar a face dele, mas seus dedos
encontraram o rosto peludo no lugar.
O lobisomem uivou e ela se deu
conta de que não tinha mais escapatória. Ele já estava sobre ela, havia-a
dominado sem que ela percebesse. Novamente ele mostrou as garras e farejou seu
medo e seu sangue. O pânico outra vez a invadiu e o mundo começou a girar e
desaparecer. Quando o sentiu lamber o sangue de suas feridas, preparando-se para
mordê-la, ela desfaleceu.
Axel era um homem amaldiçoado.
Quando criança fora transformado em lobisomem e desde então nunca se conformara
com seu destino. Pensara algumas vezes em dar um fim à própria vida, mas nunca
tivera coragem o suficiente. Quando a primeira noite de lua cheia daquele ciclo
se iniciou na última noite de outubro, ele nem se importou com o fato de ser a
noite das bruxas. Aquilo era pouco, frente ao pesadelo por qual passava todos
os meses. E então, todo o inferno recomeçara. A dolorosa transformação e em
seguida o descontrole sobre os próprios atos, que o deixava numa
semiconsciência dentro do monstro, vendo o que fazia sem, contudo, conseguir
impedir-se de cometer tais atos hediondos.
Seu faro aguçado percebeu um odor
que lhe inebriou e a fera passou a persegui-la. Atacou quem se pôs em seu
caminho, produzindo um rastro de sangue e dor. Agora ela estava ali, subjugada,
apavorada. O seu perfume seduzindo o homem e o cheiro de pavor e sangue
atraindo a fera. Seus olhos se encontraram e Axel achou que por um instante ela
conseguiu senti-lo, a despeito do mostro prestes a atacá-la.
Porém, a fera era mais forte, ou
talvez ele já estivesse cansado de lutar. Viu-se contemplando o corpo da jovem
até parar num ponto onde o sangue escorria devido a um ferimento. Assim que
tocou com a língua o ombro da garota, percebeu que ela desfalecera. Isso
tornava tudo mais fácil para o lobo que instintivamente passou a lamber o
sangue dos ferimentos, antes de partir para o ataque final.
O sangue de uma virgem bebido no
último minuto da primeira noite de lua cheia. Por muitos anos ele pensara
naquilo como um desejo secreto e impossível. Acreditava desacreditando, como em
um conto de fadas. Mas agora, se sentindo cada vez mais forte e a fera cada vez
mais fraca, Axel desejava ardentemente que aquilo fosse realmente verdade.
Percebeu o monstro uivando de dor
e frustração enquanto caía para o lado. Sua mente estava enevoada e confusa. Não
era a hora da besta sumir, ainda tinha que atacar a garota... A porção humana
ficava cada vez mais forte em Axel e, aos poucos, ele se dava conta de que ela
o salvara sem nem mesmo saber. Aquela jovem quebrara a maldição que há anos o
consumia. Ele parecia que ia explodir. Ouviu-se dando o que seria, talvez, seu
último ganido e perdeu a consciência por longos instantes.
Leonor abriu os olhos, confusa.
As lembranças dos últimos acontecimentos retornando pouco-a-pouco e
aterrorizando-a mais uma vez. Sentou-se com dificuldade, perscrutando à sua
volta. O amanhecer clareava o local, facilitando sua visão. Um movimento ao seu
lado fez com que seu coração falhasse uma batida, imaginando que o perigo ainda
estava ali. Todavia, avistou apenas um homem que parecia também estar acordando
naquele momento.
Pensou que talvez ele, assim como
ela, tivesse sido atacado. Observou-o mais atentamente e não pôde evitar corar
ao perceber que ele estava totalmente nu. Desviou o olhar assim que ele a encarou. Notou
que ele se aproximava e, estranhamente, não teve medo. O homem agachou-se perto
dela e tocou de leve em seu rosto, como se somente dessa forma pudesse se
certificar que ela era real. Um tremor gostoso percorreu seu corpo quando ele
ergueu-a em seus braços fortes. Seus olhos finalmente se encontraram e Leonor
achou que já o conhecia de algum lugar. Enlaçou-o pelo pescoço e deixou-se
carregar sem contestar.
- Foi você quem me salvou? – foi
a única coisa que ela conseguiu perguntar.
- Não – a voz de Axel saiu baixa
e sensual. - Foi você quem me salvou.
Quando Leonor aceitou suas
palavras sem questionar, aninhando-se em seu peito, Axel sorriu e a carregou em
direção à sua cabana que ficava ali perto. Haveria muito tempo para explicar
tudo a ela. Eles tinham a vida inteira para isso...
Nota: Esse conto foi publicado por mim, em 2007, como uma fanfic UA Tonks/Remus e agora foi adaptado para um conto livre.
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