A
Demanda de Camron
Foi na mesma época em que todos procuravam pelo Santo Graal que tudo aconteceu.
Camron era um jovem cavaleiro, sagrado por ninguém menos que Boors, um dos
homens mais próximos do rei, para quem havia servido como pajem e escudeiro.
Apesar de ter estado em campanha junto ao séquito do próprio Artur, das
aventuras que participara após tomar armas, as mais emocionantes se resumiam em
pequenas batalhas contra saxões. E delas saíra apenas com arranhões que nem
cicatrizes deixariam para se vangloriar depois.
Ao contrário de muitos
outros cavaleiros, Camron não almejava riquezas ou títulos. Apesar de não ser o
filho mais velho, após a morte de seu irmão em batalha, honrada e lembrada por
todos, herdara o direito a tudo. Porém, não recebera reconhecimento como parte
de seu legado. Isto ele teria que conquistar por si mesmo. E Camron preferia
obter as próprias glórias, sem depender dos favores de ninguém. Íntegro e
correto, alimentava a esperança de um dia sentar junto aos cavaleiros mais
importantes da Távola Redonda e sabia que, para isso, aproximar-se do cálice,
ou ao menos obter uma informação sobre seu paradeiro, já seria o suficiente.
Logo que os
cavaleiros da corte de Artur deixaram Camelot em busca do tesouro sagrado,
Camron seguiu junto de Boors por algum tempo até que se separaram em busca de
suas próprias aventuras. Passaram-se muitas luas sem que se deparasse com
alguma contenda que desviasse sua atenção da busca do Graal.
Então, em um começo de
noite, quando o vento frio açoitava Camron sobre o cavalo, que seguia devagar
depois de um dia inteiro de marcha, e mesmo a proteção da grossa capa de lã que
usava sobre a armadura, parecia ínfima frente ao clima, os acontecimentos
tomaram outro rumo. O jovem aproximou-se de uma elevação no terreno e sentiu-se
revigorar ao avistar falhas na encosta, grandes o suficiente para abrigá-lo
durante a noite.
Conduziu o cavalo com
impaciência. O animal parecia temeroso de embrenhar-se pela fenda no terreno
rochoso para o qual Camron o incitava, mas, tão logo sentiu que a força do
vento diminuía à medida que seguia caverna adentro, seus passos se tornaram
mais ansiosos. Camron estava exausto, mas sabia que ainda não poderia
descansar. Retirou o elmo e desarmou-se. Prendeu as rédeas do cavalo sob uma
pedra, livrou-o da sela e da pouca carga que carregava consigo, alimentou-o com
a aveia que ainda restava e saiu novamente de encontro ao vento à procura de
algo para acender uma fogueira. O sol já começava a sumir, deixando para trás
apenas mais frio, quando Camron voltou à pequena caverna que lhe serviria de
abrigo. Acendeu o fogo, mastigou um pedaço de carne ressecada, cobriu-se com a
manta e ajeitou-se o melhor que pode, junto ao cavalo que já procurava
descansar.
Reviu seus passos desde que
deixara o castelo de Camelot e sentiu a desesperança inundar-lhe. Quem era ele
para merecer encontrar o Graal? Soubera que alguns dos cavaleiros da Távola
Redonda já haviam sucumbido à demanda e agora jaziam mortos pelos quatro cantos
do reino de Logres. Reunindo toda fé que possuía em Nosso Senhor, a quem
aprendera a crer e temer, rezou pedindo que, de algum modo, Ele lhe mostrasse o
caminho que deveria seguir.
O sono demorou a chegar
apesar de todo o cansaço que sentia, contudo, quando Camron finalmente
adormeceu, o sonho pareceu iniciar de imediato. A fogueira que o aquecia tinha
desaparecido e em seu lugar o breu do interior da caverna só era quebrado por
pequenos vagalumes que esvoaçavam perto da entrada. Incapaz de conter-se, como
sempre acontece nos sonhos, Camron seguiu os insetos reluzentes, subiu a
encosta até quase o topo e lá encontrou outra fenda formando nova gruta. A
ansiedade que sentiu ao colocar os pés na entrada escura só aumentou quando não
conseguiu prosseguir. Parecia que havia uma parede invisível que o impedia de
ir além. Porém, antes que Camron desistisse e retornasse pelo caminho que
viera, ouviu uma voz que parecia vir de dentro de sua mente.
Escolha...
Diante de seus olhos, os
vagalumes iluminaram o fundo da caverna, na qual ele ainda não conseguia
entrar, e ele conseguiu divisar uma bifurcação. Seria sobre essa escolha que a
voz se referia? Como se ouvindo seus pensamentos, a voz misteriosa voltou a
soar.
Um
dos caminhos o levará à glória que há tempos procuras alcançar. O outro lhe
dará o graal de sua vida, sua felicidade e alegrias. Mas a vitória, tanto em um
quanto no outro, dependerá mais que nunca da retidão de seu caráter.
Como se estivesse caindo de
um abismo, Camron acordou sobressaltado. O fogo se resumia a poucas brasas que
teimavam em permanecer acesas e o frio enregelava seus ossos. Por um breve
segundo esperou ver o brilho dos vagalumes na entrada da caverna como no sonho,
mas era apenas o negrume da noite sendo substituído pelo raiar do dia.
Assim que terminou de
armar-se e selar novamente a montaria, Camron aproximou-se da abertura da
caverna com receio. Esperava encontrar a trilha que tomara em seu sonho, mas
nada descobriu na parte de cima da montanha em que estava. A frustração ameaçou
tomá-lo, mas, temente a Deus como era apropriado aos cavaleiros da corte de
Artur, resignou-se e tentou esquecer-se do devaneio que tivera. Deste modo,
Camron percorreu muitas léguas naquele dia e nos seguintes, parando apenas para
conseguir provisões e descansar durante a parte mais escura da noite, que caía
cada vez mais cedo naquela época do ano.
Durante o alvorecer e o
crepúsculo, o brilho da friagem e do sereno nas plantas enganava a vista. Por
isso, Camron demorou a distinguir o que via no alto do morro à sua frente, e
mesmo quando pareceu compreender, receou estar sendo ingênuo. Desceu do cavalo,
retirou o elmo para que nada o atrapalhasse e forçou a vista. Lá estava, um
brilho que parecia aumentar a cada momento e que Camron sentia que poderia
cegá-lo. Certo de que afinal seu sonho havia sido um aviso, nem se preocupou em
prender o animal antes de subir a encosta íngreme.
A noite desceu por completo
quando Camron alcançou a entrada e divisou com dificuldade a bifurcação ao
fundo. Ao contrário do que se poderia supor, na pequena câmara formada, um
archote queimava, iluminando o local, como esperando por alguém para usá-lo. A
mesma ansiedade que o acometeu no sonho, pareceu imobilizá-lo por um momento,
mas após o primeiro passo, todo hábito de bom cavaleiro prevaleceu. Alcançou a
tocha e rumou com cuidado até a divisão entre os caminhos que deveria escolher.
As palavras que ouvira em
seu sonho pareciam ecoar na mente de Camron como se as tivesse acabado de
ouvir. A glória ou o Graal? Nunca antes custara tanto tomar uma decisão. Até o
momento em que tivera aquele sonho estranho, pensara que a busca pelo Graal lhe
renderia as glórias necessárias para tomar um lugar na Távola Redonda. Mas algo
lhe dizia que, talvez, não fosse assim.
Olhou para os dois caminhos
tentando decifrar seus rumos, mas, tirando as direções opostas, estes eram de
todo iguais até onde a vista alcançava. De algum modo sabia que a partir do
momento que escolhesse uma direção, não poderia desistir e retornar e, por
isso, procurou observar com toda atenção cada uma.
Inesperadamente, o ar soprou
brevemente na direção de Camron, vindo do fundo de um dos túneis, trazendo
consigo um perfume suave e inebriante que parecia prometer algo belo e
celestial. O que quer que encontrasse, seguir naquela direção só poderia ser obra
de Deus e Camron quase podia ver o Graal tão desejado no final do caminho.
Estava prestes a dar o
primeiro passo quando um som, vindo do outro túnel, fez com que estacasse no
lugar. Um rosnado baixo, gutural e inumano, misturado com alguns gritos de pavor
tão baixos e seguido pelo inconfundível som de uma espada cortando o ar, que,
se não fosse o silêncio sepulcral dentro da caverna, Camron não teria
conseguido escutar. Um arrepio percorreu cada centímetro do corpo do cavaleiro
e ele soube que sua decisão estava tomada.
Com um último olhar para o
túnel de onde vinha o aroma delicioso, Camron virou-se e seguiu pelo caminho
onde ouvira os gritos. Tentava caminhar o mais silenciosamente possível para
não ser surpreendido. Pareceu que caminhara por horas até ouvir novamente o
rosnado, agora mais forte e ameaçador. Camron apressou o passo, notando alguns
rasgos de claridade mais à frente. Deixou a tocha que segurava e desembainhou
sua espada, segurando-a firmemente com as mãos à frente do corpo, pronto para atacar
ao menor sinal de perigo. Mas não
imaginara em nenhum momento a cena que encontrou.
Sobre um chão coalhado de
ossos, um dragão – não tão grande quanto aquele caçado pelo Rei Pellinore, mas
ainda assim um temível dragão – estava caído no meio de uma câmara, ainda com
as narinas fumegando. A um canto, um guerreiro jazia morto, com a espada, o
escudo e parte de sua armadura derretida pelo fogo produzido pelo imenso
monstro. Mas o que chamou a atenção de Camron em toda a cena que observava era
a donzela caída embaixo da besta.
Assim que viu a donzela,
Camron soube que não lhe importava se esta fosse uma princesa ou apenas uma
criada, se viesse das terras frias do norte, de algum ponto do país do Verão ou
mesmo descendesse das Ilhas Sagradas. Ele a amaria até o fim de seus dias. Com
cuidado, aproximou-se da fera, cujo sangue esverdeado saia por uma ferida
profunda na altura em que Camron achava que estaria seu coração. O guerreiro
morto tinha conseguido matá-lo afinal, pensou com um misto de frustração e alívio.
Parecia fadado a não participar ativamente de nenhuma aventura.
Camron olhou novamente para
a donzela, seus cabelos cor de cobre e o rosto pálido hipnotizando-o por alguns
momentos. Tinha que tirá-la dali e para isso, primeiro precisava alcançá-la. Tentou
pular por sobre o corpo estendido do dragão, mas o calor que ainda desprendia
era muito forte e impedia-o. Por isso, empunhou a espada que trazia e com um
único golpe cortou a cabeça da fera, que rolou para o lado, garantindo a
passagem livre de Camron até a donzela.
Após retirar a donzela
debaixo da pata do dragão, Camron carregou-a nos braços pelo caminho de volta
do túnel, rezando intimamente para que tivesse chegado a tempo de salvá-la.
Chegando ao lado de fora da montanha, percebeu que já havia amanhecido apesar
do tempo parecer ter corrido de modo diferente no interior da montanha. Ao
sentir a claridade e o parco calor do sol tocando seu rosto a moça abriu
devagar os olhos de um verde límpido e murmurou para seu salvador um
agradecimento, o que renovou-lhe as forças e encheu seu coração de alegrias.
Camron serviu à donzela um
pouco da água e do pão que havia conseguido numa ermida, onde parara para se
alimentar no dia anterior, o que ajudou a restaurar um pouco de suas forças e
da cor em seu rosto. E foi então que ela conseguiu contar-lhe sua história. Seu
nome era Adryna, filha do rei Loïc, senhor daquelas terras. Ela havia sido
raptada dias antes, pelo dragão morto na caverna – assim como tinha acontecido
com as suas quatro irmãs mais velhas anteriormente. Contudo, ao contrário do
que ocorrera nas vezes anteriores, o destino lhe agraciara sob a forma de um
valente cavaleiro que vencera a fera antes que esta lhe tomasse a vida.
Lady Adryna falava de modo
arrebatado, as palavras cobertas de ternura e gratidão, reconhecendo em Camron
seu salvador e entregando-lhe seu coração. Todavia, uma vez que para este quem
havia matado o dragão havia sido o outro cavaleiro que ferira gravemente o
monstro e pagara com a própria vida no interior da caverna, a declaração da
donzela não lhe causara júbilo, apenas culpa e consternação por não ter
desfeito o mal-entendido.
Gentilmente, Camron acomodou
a moça sobre o cavalo e guiou-os a pé, até o castelo do rei Loïc, chegando
quase ao anoitecer. O rei, que já havia perdido as esperanças de ver Adryna,
ficou exultante ao reencontrá-la e dirigiu a Camron todas as suas atenções.
Devia a vida de sua filha ao jovem cavaleiro, a única que lhe restara após os
sucessivos ataques do temível dragão, e sentia uma imensa gratidão por este. Em
sua homenagem mandou preparar um banquete e garantiu-lhe todas as honras do
reino. E também, para completa surpresa do cavaleiro, informou-o que, assim
como havia feito das outras vezes em que tivera uma de suas filhas raptada pelo
dragão, ele prometera àquele que conseguisse matar a fera e salvar a princesa,
o direito de desposá-la.
Apesar de estar com o
coração repleto de felicidade ante a perspectiva de unir-se à donzela a quem
amou à primeira vista, Camron também sentiu que era um completo farsante. Ele
não havia derrotado o dragão, apenas entrara na hora certa e aproveitara a
oportunidade. Porém, como afirmar isso em voz alta? De que maneira conseguiria
desistir de lady Adryna sem que, com isso, ferisse o próprio coração de morte?
Imerso em suas considerações, Camron mal aproveitou a festa que o rei Loïc lhe
dedicava. Bardos cantavam suas melodias, enalteciam-no, contando maravilhas que
ele nunca se aproximara de fazer, mas Camron não se dava conta. Nem mesmo o
fato de Adryna não conseguir desviar o olhar de sua pessoa, tirou Camron de
seus pensamentos e, aproveitando um momento em que a atenção de todos estava
voltada para a chegada de mais um tonel de vinho, retirou-se aos seus aposentos
sem ser questionado.
Em tudo e por tudo, Camron
havia dedicado sua vida à cavalaria. Antes mesmo de ter força suficiente para
segurar a espada que agora adornava sua cintura, almejara sentar-se junto aos
outros cavaleiros na Távola Redonda, brindar ao rei Artur, proteger Camelot. E,
naquele momento, em meio a comemorações e alegria – ao mesmo tempo em que
sentia sua alma ser corroída pela culpa -, soube que precisava agir como tal.
Nunca
antes havia estado em uma situação onde se encontrasse a ponto de esquecer seus
valores e suas obrigações. Estava certo de que se mantivesse o silêncio sobre o
ocorrido com o dragão no interior da caverna, desposaria lady Adryna com as
bênçãos de todos. Contudo, por estar ocultando a verdade, não teria paz em seu
espírito. Não obstante, se contasse toda a verdade, o rei Loïc passaria a
desconsiderá-lo como um pretendente a altura de sua filha e, portanto, estaria
abrindo mão de sua felicidade. Acreditava que nem mesmo se voltasse à busca do
cálice sagrado e obtivesse êxito, sentir-se-ia realizado.
O dia mal começara a clarear
quando Camron deixou o cômodo que o rei Loïc mandara aprontar para ele. Desceu
até o pátio, onde encontrou um pajem a quem solicitou que aprontasse seu cavalo
e trouxesse suas armas. Chegou mesmo a pensar em deixar o local sem falar com o
rei, mas a conduta de cavaleiro, ainda mais um cavaleiro da Távola Redonda,
assim não o permitia. Já parcialmente armado – faltava-lhe ainda o elmo e o
escudo – e com seu animal pronto para partir, Camron solicitou uma audiência
com rei Loïc, como ditava sua consciência e os bons costumes.
O rei Loïc parecia surpreso
ao receber Camron tão cedo em seus aposentos. Vê-lo com a aparência bastante
séria, logo nas primeiras horas do dia, não parecia um bom presságio. Camron
aproximou-se cabisbaixo e ajoelhou-se defronte ao rei, tomado por imensa
vergonha.
_ Vim solicitar vossa
permissão para deixar o castelo.
_ O que dizes? Pensava que
seria de vosso agrado desposar minha filha, cuja vida salvaste de morte
terrível.
_ Acredite, senhor, nada me
deixaria mais feliz do que permanecer em vosso reino. Todavia, me encontrava em
meio à demanda do Graal, juntamente com meus companheiros da corte de Artur, e
nesta devo permanecer até o dia que Nosso Senhor determinar.
Apesar de toda admiração
pelo cavaleiro à sua frente, o rei Loïc sentiu-se indignado pela atitude do
jovem que ainda no dia anterior parecia bastante disposto a tomar a mão de sua
filha. Contudo, sempre fora um homem bom, que não costumava deixar as emoções
falarem mais alto, principalmente quando se sentia encolerizado. Por isso
procurou argumentar com Camron, se não para fazê-lo reconsiderar, apenas para
que melhor compreendesse sua aparente mudança de atitude.
_ Não posso impedir que nos
deixe, visto que me encontro em dívida com vossa pessoa. Entretanto, acredito
estar no direito de questionar sobre as causas de tão súbita decisão, pois que
ainda ontem parecias deveras satisfeito. Se a razão for tão somente a busca
pelo cálice sagrado, cuja palavra de cavaleiro empenhaste em empreender, será
com muito pesar que lhe dou minha permissão para que se vá. Contudo, afirmo
que, ao fazê-lo estarás causando muito mal a estes que estarão para sempre em
dívida contigo.
_ Que Deus não permita que
eu seja a causa de qualquer mal. Tenho por todos grande estima desde que pus
meus olhos sobre vossa filha.
_ Então saibas que lady
Adryna será a maior prejudicada com sua partida, posto que estará marcada para
sempre. Não haverá outro homem, cavaleiro ou serviçal, que a aceitará após ter
sido recusada por vós.
_ Por Deus, rogo que não
digas uma vilania dessas, que já sinto arrependimento pelo que farei a quem
tenho tanto apreço.
_ Me conte então, por qual o
motivo desgraçará minha filha?
_ Eu não mereço desposá-la,
visto que não fui eu quem a salvou do dragão.
_ Mas se foste tu quem a
trouxeste de volta!
Camron soube que havia
chegado o momento em que deveria contar a verdade e assim, perder toda a
simpatia que haviam depositado em si. Estufou o peito em busca de dignidade e
declarou com voz firme:
_ Todavia, quando eu a
encontrei, outro cavaleiro já havia dado cabo da besta, tendo morrido em
seguida. Portanto, acredito que a reputação de sua filha está salva, porquanto
sua mão seria para aquele que a salvasse.
Ao compreender que o jovem
não tencionava lhe fazer desfeita, do contrário, estava agindo como um
verdadeiro cavaleiro não cometendo perjuro, o rei Loïc sentiu-se ainda mais
entristecido por não poder celebrar tão honroso casamento e procurou logo
acalmar os ânimos. Pediu a Camron que não se apressasse e ao menos ouvisse toda
a história sobre o rapto de lady Adryna pelo dragão da montanha. A princesa,
convocada à câmara real, não demorou em juntar-se a eles.
Para Camron, lady Adryna
estava ainda mais bela do que em qualquer outro momento em que lhe colocara os
olhos. Todavia, acreditando-se cheio de desonra e desmerecedor de qualquer
consideração, baixou os olhos em sinal de desconforto.
_ Querida filha, pedi sua
presença para que contes a este jovem cavaleiro toda a desgraça que ocorreu
desde que foste levada daqui pela maldita besta. Porquanto seu testemunho
deverá ser de mais valia que o de qualquer outro.
_ Como quiseres, senhor meu
pai – concordou Adryna, fazendo uma vênia na direção de Camron. – Há cerca de
uma semana, solicitei ao meu pai que me deixasse colher algumas flores da
estação para que pudesse, com elas, ornamentar o altar para a missa em honra de
minha mãe. Como já havia se passado mais de um ano desde que o dragão levara
minha última irmã, e acreditando que talvez estivesse o reino já livre de tão
desgraçada ameaça, fui autorizada, contanto que não fosse desacompanhada e nem
me afastasse dos servos que deveriam me proteger. Entretanto, nem mesmo tantos
cuidados foram o suficiente para me salvar. Mal me afastara um quarto de légua
do castelo, quando percebi o calor emanado pelo fogo da criatura alcançar as
pessoas ao meu lado, queimando-as viva. Em seguida, fui alçada aos céus por
suas garras e tal foi o medo ante a certeza de meu infortúnio, que desmaiei e
só recobrei a consciência quando já estava no interior da montanha onde me encontraste.
_ E o outro cavaleiro? –
indagou Camron.
_ Assim que percebemos que
lady Adryna havia sido levada pelo dragão, convoquei os cavaleiros do reino,
além de enviar mensageiros aos reinos vizinhos, da mesma maneira que fiz das
outras vezes, – rei Loïc tomou a palavra. - Não posso condenar os homens por
não se interessarem em salvar mais uma de minhas filhas, quando tantos outros
já haviam dado suas vidas em vão pelas outras quatro. Deste modo, quando
somente sir Jeremy se voluntariou, eu realmente não me enchi de esperanças.
_ Eu não sei o motivo pelo
qual o dragão não me matou assim que chegou à sua toca, entretanto, quando sir
Jeremy finalmente apareceu, encontrou-me no limite das minhas forças, visto que
não me alimentava há dias. Ele tentou me alcançar, chegou mesmo a ferir o
monstro com sua espada, contudo não foi rápido o suficiente para se desviar das
chamas que este lançara, enquanto caia sobre mim.
_ Foi nesse momento que eu a
encontrei. Depois que este cavaleiro, sir Jeremy, já havia ferido o dragão,
portanto, não tenho nenhum mérito além de tê-la tirado daquele lugar.
_ O senhor não compreende,
sir Camron. Aquele dragão não morreu do ferimento causado por sir Jeremy. É
provável que tenha ajudado, obviamente, mas ele já havia sido ferido outras
vezes e era apenas uma questão de tempo até que se recuperasse e me matasse.
_ O que o senhor fez ao
entrar na caverna, sir Cameron? – questionou rei Loïc, como quem já sabe a
resposta.
_ Apenas afastei a fera para
poder alcançar sua filha, alteza.
_ E de que modo?
_ O dragão ainda resfolegava
um vapor incinerante, então, cortei-lhe fora a cabeça...
_ E ainda alega não tê-lo
matado? Pelas amargas experiências que tivemos com a fera, meu jovem, a única
forma de detê-la seria arrancando-lhe a cabeça.
Atônito, Camron olhou do rei
Loïc para lady Adryna, sentindo-se um tolo. Mesmo que tivesse realmente matado
o dragão, possibilidade que aos poucos admitia a si mesmo, não o tinha feito
num ato de bravura como seria esperado por um cavaleiro, ainda mais um advindo
da Távola Redonda, companheiro de Artur. Aparentemente sua sina era a de nunca
entrar em uma aventura. Não que matar o dragão não tivesse, de certa forma,
sido uma aventura - rei Pellinore tentara o mesmo durantes décadas -, mas não
parecia quando não vinha acompanhado de um bom embate, muito suor e uma boa
quantidade de sangue, principalmente vindo da besta.
_ Você me parece
decepcionado... – rei Loïc declarou após observar o cavaleiro durante alguns
momentos. – Se realmente não estiver interessado em levar a glória sobre a
morte do dragão, deixemos a verdade entre nós. Anunciarei que o responsável
pelo salvamento de minha filha foi sir Jeremy. Deste modo, acredito que a honra
de lady Adryna ficará resguardada e, portanto, ficarás livre de qualquer compromisso
e poderás partir quando desejar.
Camron anuiu, ainda imerso
em pensamentos, mas já sabia o que fazer. Seu coração batia em um mesmo
compasso há dias, desde que vira lady Adryna pela primeira vez, entre a vida e
a morte, caída sob o dragão. Tudo agora fazia sentido. E se isso significava
uma vida longa e calma naquele reino, que fosse. Sempre teria as justas para
poder combater.
Ajoelhou-se à frente do rei
Loïc, onde pediu para que lhe concedesse a honra de desposar lady Adryna,
contudo, não como uma forma de recompensa por ter matado o dragão. Compreendera
que Adryna era o seu graal. A sua demanda era por ela. Voltou-se para a amada
e, em um gesto apaixonado, retirou o anel que levava consigo como uma lembrança
de seus pai, um dos seus bens mais preciosos, e depositou-o nas mãos dela antes
de beijá-las. Não disse palavra. Apenas esperava que seu gesto fosse o
suficiente. Com os olhos marejados Adryna sorriu graciosa, baixou o rosto e
pediu, num fio de voz:
_ O senhor me concederia um
dom, se eu lhe pedisse?
_ Um dom? - Camron inquiriu
intrigado. - Mas é evidente! Para milady buscaria as estrelas, se assim me
pedisse. O que desejas?
_ Prometa-me que, aconteça o
que acontecer, estarás ao meu lado até o fim de nossos dias.
Com o coração transbordando
de felicidade, Camron ajoelhou-se novamente aos pés da dama, segurando-lhe as
mãos enquanto respondia:
_ Esta é uma promessa que de
forma alguma deixarei de cumprir.
Em meio aos muitos
preparativos para o casamento, Camron seguia apressado pelos corredores do castelo.
Perdera mais tempo do que pretendia redigindo e enviando uma mensagem à corte
do rei Artur, e agora tinha pouco tempo para preparar-se para a cerimônia.
Virou no corredor que levava aos seus aposentos quando a voz de lady Adryna lhe
chegou aos ouvidos. Contudo, não era a voz gentil e melodiosa com que estava se
habituando e sim sussurros rápidos e raivosos. Temendo por sua amada, Camron
seguiu os sons, curioso por saber o que poderia estar acontecendo. Estacou a
porta de uma pequena câmara que lhe passara despercebida a tempo de ouvir o
impacto da bofetada e acompanhar o inesperado diálogo que se seguiu.
_ Como ousas me ameaçar,
sabendo o que sabes sobre mim?
_Tirastes o que me era mais
caro e, portanto, nada mais tenho a temer, milady.
_ Quem? Por acaso estás se
referindo ao pobre sir Jeremy? - Adryna perguntou cheia de malícia, sorrindo ao
perceber a palidez crescente no rosto da jovem caída aos seus pés. - Ou achavas
que não havia reparado nos olhares que trocavam? Achas realmente que eu
deixaria uma reles serva se unir a um cavaleiro? Se tive coragem de acabar com
a vida de minhas irmãs, para poder reinar absoluta sobre essas terras, como não
ousaria desfazer um romancezinho sem cabimento?
Nem em seus piores pesadelos
Camron poderia imaginar que lady Adryna, algum dia, poderia cometer as
atrocidades que acabara de dizer. Devia haver algum engano. Perplexo, abriu a
porta de carvalho, deixando-se ver pelas duas mulheres ali dentro.
_Ora, mas se não é meu amado
cavaleiro. Não deverias estar se preparando para a cerimônia do nosso
casamento?
_ O que está acontecendo
aqui, milady?
_ Pobre sir Camron, não
consegue acreditar que a donzela cuja vida salvou de um destino cruel possa
ser, na realidade, a causadora de todo mal desse reino. És tão ingênuo e tolo
quanto aparenta ou apenas não quer ver a realidade como meu pai?
_ Então tudo que
dissestes... Mas eu a salvei do dragão!
_ Ah, o dragão... Realmente
foi uma pena ter perdido meu prestativo amigo. Todavia, ele serviu ao seu
propósito...
_ Como podes ser capaz de
tamanha vilania?
_ Quando tudo que lhe guarda
o futuro é ser entregue ao primeiro cavaleiro de segunda classe interessado em
servir em vez de comandar, você aprende rapidamente a tomar as rédeas do
próprio destino.
_ Por Deus! Vou
imediatamente ao seu pai...
_ Não esqueças que me
prometestes um dom, sir Camron. E como um bom cavaleiro, não podes quebrar a
promessa feita. É teu nome, tua honra que está ameaçada.
Camron olhou diretamente nos
olhos ferozes de Adryna. A despeito de tudo, ela estava certa. Empenhara sua
palavra. E também seu coração. Mesmo agora, sabendo o que sabia, a amava e lá
no fundo de sua alma ardia a esperança de que tudo não passasse de um grande
engodo, um intenso pesadelo, ou até mesmo obra de feitiçaria. E era essa
esperança que fazia com que seu amor por Adryna não caísse por terra.
Algumas horas mais tarde,
sob as bênçãos do padre local e dos olhares das pessoas do castelo, sir Camron
e lady Adryna uniram-se em matrimônio. Como contariam os bardos, tempos depois,
sir Camron trocou a demanda do graal pela busca da felicidade. E nada alcançara
no final. O jovem cavaleiro, honrando sua palavra, nunca desistira de sua
amada. Acabara fechando os olhos para as mortes e desaparecimentos que
continuaram acontecendo no reino até que, muitos anos mais tarde, cansado de
lutar contra sua sina, morreu de desgosto ao aceitar o erro que cometera.
Alguns disseram que foi o dissabor de não ter seguido o Graal, outros tantos
que foi tudo obra de um veneno, mas nunca se acusou ninguém.
2 comentários:
Adorei!
Este seu conto Arturiano me lembrou muito dos livros da Marion Zimmer Bradley! Senti como se fosse um conto escrito pela própria autora, Pri!
Ah, sim... mas com o seu toque especial! =D
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